Tenho defendido que quando o Sr. Cavaco aparecer do nevoeiro, vindo de Boliqueime-Quibir, será uma boa altura para se começar a fazer uma análise crítica ao processo de privatizações por ele iniciado.
Manifestei esta mesma opinião num comentário no Tonibler.
Em resposta, o Tonibler considera, entre outras coisas, que «ser de esquerda é defender as privatizações. Isto se objectivo da esquerda ainda é a preocupação com os mais fracos».
O que é, sem dúvida, uma provocação aliciante para deitar algumas achas para esse debate.
Globalmente, colocar-se-á sempre a questão de saber qual o peso que o Estado deve ter na economia, e quais os sectores de actividade.
Até há bem pouco tempo era consensual, do ponto de vista da teoria económica, colocar numa primeira linha da esfera do Estado a gestão dos chamados 'bens públicos' tradicionais (saúde, defesa, recursos naturais ou mesmo 'falhas de mercado').
Numa segunda linha estarão os denominados 'sectores estratégicos', através dos quais o Estado tem uma maior ou menor intervenção na sua economia.
(Por exemplo, num País de forte dependência energética como o nosso, será dificilmente concebível deixar este sector exclusivamente na esfera privada.)
Nestas coisas, a divisão entre direita e esquerda costuma ser bastante simples:
A direita defende o mínimo da presença do Estado e de intervenção na economia, que se deve limitar aos aspectos da regulação.
A esquerda defende a existência de um sector público estatal que permita ao Estado ter uma capacidade de intervenção directa na economia, que não se resuma ao investimento público.
Se bem me lembro, a nossa direita começou a defender a necessidade de privatizações durante a campanha presidencial de Freitas do Amaral em 1986, com o recém-eleito líder do PSD e 1º Ministro Aníbal Cavaco Silva.
Então, a argumentação era relativamente fácil:
Existia um sector empresarial do Estado que dava prejuízo;
Dava prejuízo porque o Estado era ineficiente na gestão dessas EP's;
Estas EP's, nas mãos de uma gestão privada, por definição competente, seriam mais eficientes;
Conclusão: a privatização destas EP's livrava o Estado e os contribuintes de um fardo financeiro desnecessário, tornando as empresas eficientes e lucrativas.
Realmente, como poderia a esquerda democrática discordar deste raciocínio?
Vivia-se no auge do Reaganomics e do Thatcherismo, com a Escola de Chicago a aplicar finalmente as suas teorias neo-liberais (cujos resultados estão hoje à vista, em particular nos 'países em vias de desenvolvimento').
Porém, a política de privatizações adoptada em Portugal seguiu uma estratégia diferente da apregoada: foram-se vendendo as melhores pratas e ao melhor preço de compra.
As primeiras empresas a serem privatizadas foram as mais rentáveis, até porque o nosso sector empresarial, como se sabe, nunca gostou de arriscar muito.
Mesmo a banca teve de ser 'limpa' do crédito mal parado (que foi parar à CGD) antes de ser posta à venda.
Isto sem falar naquele grande empreendedor nacional, um tal de Champalimaud, a quem se pagou uma indemnização no valor do banco que ele queria comprar (o Totta) supostamente para que este não caísse nas mãos dos espanhóis (o que rapidamente acabou por acontecer, com as respectivas mais-valias para o interessado).
Apesar de tudo, com a banca quase toda privatizada, com o crédito mal parado, com as Celestes Cardonas, os Armandos Varas e a má gestão do sector público, a Caixa Geral de Depósitos lá vai apresentando os melhores resultados...
Num País de pequenas dimensões como o nosso, não existe na maioria dos casos massa crítica suficiente para funcionarem mercados eficientes. A prova está bem à vista, com a paralisia quase total do sector privado nos últimos anos, ou a subsidio-dependência generalizada, apesar das taxas de juro continuarem a um nível atractivo.
Como agravante, a entrada de Portugal na moeda única retirou ao Estado português as políticas cambial e monetária, reduzindo com isso toda a sua margem de manobra à política orçamental, espartilhada, como se sabe, pelos critérios de convergência da PEC.
Além disso o Estado, que cresceu com as nacionalizações a seguir ao 25 de Abril, foi o mesmo Estado que cresceu com o Welfare State ('uéle fere estate'?), quando assumiu perante todos os seus cidadãos uma nova vertente social, abrangendo desde o subsídio de desemprego até às reformas do regime não-contributivo - Estado Social este hoje em crise de sustentabilidade.
A pergunta que deixo é a seguinte:
O que ganharam os portugueses com a privatização do filet-mignon das Empresas Públicas (ou seja, as mais rentáveis), vendidas a pataco, através de processos por vezes questionáveis?
Ou:
De que forma este bocado do Estado, que era rentável, poderia contribuir para o equilíbrio financeiro do OE, e para a existência de uma estratégia efectiva de crescimento económico?
Ou ainda, de uma forma mais policial:
Quem andou a lucrar com tudo isto?
Meu caro Tonibler, ser hoje arriscadamente de esquerda, seria discutir algumas nacionalizações (para além da incómoda e abandonada floresta).
Mas o máximo que a esquerda arrisca actualmente é em criticar (alegremente) a candidatura presidencial de Mário Soares...