I
Francisco Sarsfield Cabral disse ontem que "por muito que a civilização do audiovisual haja trazido novas formas de comunicação, custa-me a aceitar um mundo sem o texto escrito e a reflexividade que só ele permite".
Em primeiro lugar, ao menos FSC não é extremista como Eduardo Prado Coelho. Este é-o ao ponto de criticar os e-books, por só o livro impresso permitir essa atitude reflexiva que tanto ama.
Mas ! FSC esquece-se da absoluta complementaridade entre todas as formas de expressão. O audiovisual não substitui o livro. Ambos são usados com funções diferentes. Um e-book é, aliás, normalmente impresso pelo seu leitor. Eu por exemplo detesto ler livros no computador. Algo falta. Embora as pessoas estejam no mais absoluto direito de o preferirem.
Já cansa esta defesa de um modelo cultural absolutamente bacoco. Que está totalmente fora dos quadros da sociedade actual. Até porque qualquer indivíduo está no seu direito de não querer ter qualquer atitude reflexiva a ler.
Desse modelo de imposição de uma matriz cultural única já vou falar de seguida.
II
Enviaram-me um manifesto pelo teatro. Já calculava ler nele algumas aberrações, todas elas impregnadíssimas desse espírito horroroso que domina o meio cultural e educativo. Se bem se lembram, fomos todos educados de forma a que pensássemos "por muito que eu tenha as minhas opções e gostos pessoais, não é disto que eu deveria gostar e ouvir". Há toda uma endoutrinação para que, por exemplo no plano musical, se tenha a ideia de que a música erudita é boa e o que normalmente ouvimos não presta, por ser popular, logo inferior.
Ou seja, é a transplantação total do ridículo modelo francês, endeusado como "excepção cultural". Um modelo em que só certas formas de expressão cultural são consideradas cultura, e, mais, diz-se explicitamente que outras nunca poderiam sê-lo. Um modelo que esquece a definição antropológica de cultura, como tudo aquilo que é produzido pelo homem.
E, mais grave, onde tem que haver subsídios estatais para tudo. Não só este péssimo hábito dos subsídios públicos deveria desaparecer (JÁ) da sociedade
portuguesa, onde endemicamente não se arrisca nem avança porque se espera pelos dinheiros do Estado. Nesta área a situação é particularmente gritante.
Há dinheiros para artes plásticas (eruditas, claro), ópera, teatro, cinema, etc. Tudo o que tenha expressão de massas ou popular é absolutamente discriminado. Por exemplo, em que medida uma orquestra poderá ser superior a um graffiti ? O único argumento que já me apresentaram em contrário foi o estudo que as pessoas tiveram para lá chegar. Mas, não só um graffiti de qualidade exige anos de prática (e talento), como também o argumento do estudo é absolutamente falaccioso. Porque há escolas para umas coisas e não há para outras. Etc. Etc.
Parece existir uma Portaria que reconhece que "o subsídio à actividade teatral de iniciativa não governamental, bem como à actividade cultural em geral, é um direito dos cidadãos". Os peticionantes até dizem que é serviço público.
Essa Portaria não merece existir. Direito ??? É público que muita gente ligada ao teatro se acha suprasumo devido a isso, mas presunção e água benta....
Em qualquer caso, existir um direito genérico ao subsídio é algo de extremamente grave. É o esbanjar de dinheiros públicos em actividades que nada dizem ao povo em geral. Actividades por natureza minoritárias, e das quais a comunidade nada beneficia. Se tiverem que descontinuar a sua actividade por falta de subsídios, é da vida. Vivam com o dinheiro que arranjarem e façam produções com isso. É o que toda a gente faz na sua vida pessoal. Mudem de actividade. Tenham imaginação, algo que tanto se gabam de possuir.
Mais grave. Têm o descaramento de dizer que o exercício da democracia tem lugar "quando as mais vastas camadas das populações têm acesso à cultura".
Cá está a tal mentalidade de quem se acha os grandes educadores do povo. Absolutamente ditatorial. "Ou é disto que gostam ou o vosso gosto tem de ser ensinado", pior, "O que nós fazemos é cultura, e do que vocês gostam não é".
É claramente esta a mentalidade.
Aliás, dizem depois disso que "Se no nosso país não há um público mais vasto para o teatro (...)". Claro, claro, o povo tem que ser como suas excelências desejariam, a ter os mesmos gostos que meia dúzia de pseudoiluminados. As pessoas por natureza deveriam ir ao teatro e gostar. Etc.
Tudo isto é verdadeiramente lamentável. Pena é que a esquerda democrática ainda não se tenha libertado deste modelo de matriz francesa. A sociedade actual exige uma perspectiva verdadeiramente democrática. Que não se arrogue o direito de querer "educar" e condicionar os gostos das pessoas. Que permita à cultura tomar o seu ritmo espontâneo sem quaisquer condicionantes e apoios que destruam essa espontaneidade.
Aliás, só um sistema assente na absoluta igualdade entre as formas de expressão cultural permitirá retirar as formas eruditas do circuito fechado (eu diria mais, GHETTO) em que se encontram.
Por isso, a solução é só uma. Acabar de vez com todos os subsídios públicos à cultura, excepção feita às actividades de natureza etnográfica (por motivos ÓBVIOS), a conceder neste caso pelas autarquias locais.
Solução liberalizante ? Talvez. Até porque a consequência é a mesma de uma visão neoliberal. Mas os pressupostos em que esta minha posição assenta são radicalmente diferentes, porque a cultura ao povo pertence e não a meia dúzia de pseudointelectuais que se arrogam o direito de querer julgar e condicionar os gostos alheios.
Gostos discutem-se, mas respeitam-se.