A Redenção
Há uns tempos atrás, num post intitulado «O Espelho da Sociedade em que Vivemos», escrevi o seguinte:
«O verdadeiro problema da política portuguesa começa no alheamento das pessoas em relação aos problemas que lhe dizem respeito, passa pela falta de cultura cívica, e desagua no mar de demagogia onde os políticos são todos iguais: incompetentes, irresponsáveis, corruptos, etc.
Se os partidos são constituídos por cidadãos livres, temos os partidos que queremos, e a democracia que merecemos.»
Vem isto a propósito do post da «Sociedade Civil» e dos comentários feitos no Tonibler a seu respeito, pelo 'Tonibler imesélfe' , nomeadamente quando se diz:
«A sociedade civil é a parte da sociedade que cabe aos cidadãos. Significa isto que, quando se coloca os partidos fora da sociedade civil, se está a assumir que os cidadãos não fazem parte dos partidos.»
Eis algo tão falacioso como a ideia de «sociedade civil», o que é, de certa forma, coerente.
Mas, por definição, lógica e bom senso, os partidos políticos são constituídos por cidadãos.
E a democracia é feita por cidadãos e partidos políticos.
Querer interpor uma tal de «sociedade civil» nesta relação basilar em nome dos cidadãos é ilógico, inaceitável e, acima de tudo, impossível.
Mas participar na democracia e nos partidos políticos dá trabalho.
É neste prisma que a corrupção conceptual em torno da «sociedade civil» se explica e revela-se verdadeiramente redentora.
Ao alheamento cívico das pessoas, ao seu egoísmo, ao seu distanciamento das causas públicas, a existência desta mítica «sociedade civil» desempenha um papel importante nas suas consciências individuais dizendo-lhes: 'Não te rales; és da «sociedade civil»; não tens culpa; a culpa é de uns tais de políticos; estás perdoado, vai em paz'.
E assim se fica em casa, de consciência tranquila, no grande sofá da «sociedade civil».
Esta ideia não será também alheia ao clima de desresponsabilização generalizada que é apanágio da nossa sociedade.
Por exemplo, diz tonibler, «se os partidos políticos não fossem a fonte da corrupção no país»...
É mais uma ideia espantosa!
Ou seja, não existe corruptores nem corrompidos, apenas partidos políticos.
Existem, talvez, empresários dinâmicos que 'procuram' oportunidades ou tentam 'ultrapassar' burocracias, em nome da sua contribuição para a riqueza nacional (e pessoal, livre de impostos). E existem funcionários que, de acordo com esta ideia, sob coacção dos partidos políticos, ficam à disposição destes empresários. (Note-se que, da mesma maneira em que vivemos num país de doutores, quem não é funcionário público, para ter o mínimo de estatuto, tem de ser empresário).
Empresários e funcionários não têm culpa: são apenas vítimas vorazes da política.
Estão absolvidos, em nome da «sociedade civil».
Como alguém já comentou recentemente, se algo vai mal na agricultura, a culpa é dos políticos.
Se algo vai mal na economia, a culpa é dos políticos.
Se algo vai mal na educação, a culpa é dos políticos.
Se algo vai mal na saúde, a culpa é dos políticos.
A «sociedade civil» que separa os cidadãos dos partidos políticos, a todos perdoa.
Tonibler afirma: «Eu recuso-me a militar em qualquer partido porque não considero que qualquer organização partidária portuguesa atinja um nível sofrivelmente elevado para que eu considere aderir a ela. Eu não faço parte 'deles', sou muito melhor que isso.»
Para além de revelar aquele curioso complexo de superioridade que o catecismo da «sociedade civil» permite, representa também uma inversão espantosa das responsabilidades.
Quantos Toniblers nunca tiveram qualquer participação política que contribuisse para a elevação do tal 'nível'?
Quantos Toniblers utilizam a desculpa do 'baixo nível dos partidos políticos' para optar pela conversa de tremoços?
Quantos Toniblers tudo exigem do Estado, a quem acham nada dever e, contudo, nunca deram até hoje qualquer contributo para melhorar o 'estado das coisas'?
E, depois de dizerem da política pior do que Maomé do toucinho, quantos Toniblers acabam nomeados para cargos políticos governativos?
Tonibler escreve ainda, simpaticamente, que as minhas intervenções «naquele espaço contribuem mais para a democracia nacional que o seu apoio ao PS. Pelo menos daqui pode estar certo que a sua opinião é ouvida e pode meter as mãos no fogo sobre a seriedade das pessoas que aqui escrevem. E aqui, Garcia, aqui é Sociedade Civil!»
Pessoalmente, não tenho qualquer problema em ajudar a causa do Tonibler junto da «sociedade civil», procurando destronar do topo do ranking weblog o Aqui é só gatas ou o Apanhadas na net.
Mas existe um problema de fundo, como alguém no Tonibler já colocou aos seus pares.
Sendo eu um militante do Partido Socialista, algo que sempre assumi, em particular ao longo dos mais de 2 anos em que tenho escrito no Descrédito, como posso eu dar qualquer contributo à «Sociedade Civil»?
Eu, que faço parte 'deles'?
Eu, que já vendi a minha alma ao diabo, que estou irremediavelmente para além da redenção?
5 Comentários:
Começaria por lhe dizer, caro Mário, que da minha parte não é pela filiação que deve condicionar a sua participação na sociedade civil, incluindo no Tonibler. Por outro lado há-de convir que ao não reconhecer implicitamente neste texto a legitimidade moral de movimentos cívicos fora da vida partidária, está a destruir o conceito que lhe permite estar aqui a cascar na sociedade civil: A Democracia.
A questão é mais simples, meu caro Cmonteiro.
Para mim, a sociedade civil apenas exclui actividades militares ou para-militares (forças armadas, polícia,gnr e afins).
Por outro lado, se a Democracia é feita de cidadãos e partidos, os movimentos cívicos ou qualquer outra intervenção de cidadania não está excluída. Faz, ou devia fazer parte da actividade de um cidadão.
Mas na «sociedade civil» de sofá e pantufas é que não existe qq actividade, nem cívica, nem política nem partidária.
Mesmo os blogs não são, à partida, um instrumento de cidadania por si só.
Quando um país inteiro, de um dia para o outro, nas esquinas e nos cafés, se torna especialista na construção de aeroportos e no TGV, está tudo dito.
Simplesmente brilhante.
Em completo desacordo, Mário. Dê-se por feliz enquanto à volta de um prato de tremoços se fala no TGV juntamente com o Benfica (tremoços e Benfica são inseperáveis). Pior seria não falar de todo.
Não pessoalizando, isso é snobismo. O Mário entende que também os movimentos cívicos têm que estar agrupados em organizações. Tem uma visão muito burocratizada da intervenção individual de cada um na sociedade.
A intervenção faz-se de pantufas, em organizações ou individualmente, Mário, ou não se faz de todo, porque no fim é cada cidadão que individualmente vai colocar o boletim na urna e é ele quem manda.
Independentemente de ir em grupos ou não...
Bolas, mário. Eu queria dizer mal do Soares e lá vou ter que escrever um testamento outra vez. Que maçada...:)
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