quarta-feira, abril 05, 2006

Constituição

Depois de ler este post do Rui Albuquerque, o meu sentimento é da mais completa estupefacção, pelos motivos que passo a enunciar:

1. Definitivamente há uma grande proximidade entre neoliberais e anarquistas. Pois em meu entender, quem tem medo compra um cão. E nem quando tinha uns 3 anos acreditava no bicho papão. Infelizmente, ainda há quem esteja nessa fase. Limitaram-se a substituir essa figura mítica pelo Estado.

2. Com o século XX passaram a considerar-se muitos direitos económicos, sociais e culturais como direitos individuais fundamentais. Como é o caso da Constituição da República Portuguesa, que os considera como tal. Curiosamente, são sempre ou quase sempre quem é contra a sua existência que não os considera direitos. Esses e os lunáticos e ingénuos jusnaturalistas.

3. Realmente há coisas imperceptíveis. O Estado, por esta via, ampliou substancialmente os seus domínios de ingerência no tecido social, passando a «garantir» emprego, saúde, habitação, educação, ambiente, celeridade administrativa e muitos outros doravante considerados «direitos fundamentais». Para além de Rui Albuquerque necessitar urgentemente de estudar as várias Constituições anotadas que existem no mercado, estranho desde já que faça um ataque destes à necessidade de celeridade administrativa.
Por outro lado, aqui temos mais uma vez um liberal a defender que a existência ou inexistência desses direitos dependa do capricho do legislador ordinário.
Juntemos estes dois factos e parece que estamos no início do século XIX, quando se considerava que por natureza o Estado nunca cometeria ilegalidades, ou que todo e qualquer legislador seguiria sempre princípios de uma suposta virtude objectiva. O que pouca diferença faz relativamente aos costumes e leis fundamentais do Reino do pré-absolutismo.

Conclusão: não sabem ou esqueceram lições históricas básicas. Entre as quais que o liberalismo clássico e a sua prática são um dos grandes responsáveis pelo aparecimento dos regimes totalitários.

4. É absurdo dizer que a liberdade e a propriedade estão funcionalizadas ao cumprimento dos direitos sociais pelo Estado. Não só os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa nunca foram funcionalizados a coisa nenhuma (ela nunca foi marxista, quanto mais desde 1989...), como também todo e qualquer direito não é absoluto.
Ah, claro, esquecia-me que a propriedade para estes liberais de pacotilha é mais importante do que por exemplo as garantias de processo penal...eu que tenho fama e proveito de frio e de insensível sou o primeiro a não ter qualquer dúvida quanto ao predomínio do ser face ao ter.

5. Uma Constituição moderna não pode esquecer um papel fundamental no desenvolvimento da comunidade a todos os níveis. Não lava as mãos de questões fundamentais.

6. Rui Albuquerque também deveria ler alguns manuais básicos de Direito da Economia. Nem em 1976 a Constituição limitou duramente a propriedade privada. Limitações duras à propriedade privada é coisa que só vejo serem possíveis de existir em regimes de tipo soviético ou em anarquia de tipo comunitarista.
E, em qualquer caso, sempre coube ao legislador a definição desses limites, que a Constituição, desde logo, apenas afirmava a exigência de uma delimitação de sectores, mas cabia àquele a concretização efectiva - aliás, em rigor, os sectores cooperativo e social não são mais do que o sector privado sob outra forma e regras...
Desde a sua aprovação originária que a Constituição prevê a existência dos vários sectores de propriedade. Ainda estou para saber em que é que isto afecta o direito de propriedade. E, em rigor, o texto actual do art. 82º/2 até permite que o Estado não seja proprietário de coisa nenhuma - não só porque uma interpretação realista obriga a considerar qualquer bem como meio de produção, como também porque apenas afirma o que constitui o sector público.

7. Quando Rui Albuquerque compreender o que significa uma mais que óbvia prevalência do poder constituinte originário face ao derivado eu talvez me dê ao trabalho de contrapor a argumentação que faz criticando a existência de limites materiais da Constituição em abstracto.

8. Quanto aos limites em concreto que critica:

a) A monarquia é de facto por natureza não democrática, ou pelo menos constitui uma restrição inadmissível ao princípio democrático. É tudo menos democrático que alguém seja o Chefe de Estado por ser filho de outrem.

b) Já calculava que Rui Albuquerque defendesse os despedimentos porque sim (com as gravíssimas consequências que isso teria na economia tendo em conta a retracção da confiança dos consumidores). Mas está descaradamente a defender que sejam extintos os direitos das comissões de trabalhadores (dos quais o único que poderia ser discutível seria o controlo de gestão, mas cuja existência faz todo o sentido se o considerarmos - nem poderia ser de outra forma - como o direito de informação relativamente à gestão), as garantias de liberdade sindical (relativamente às quais nenhum democrata pode estar em desacordo), os direitos das associações sindicais e de contratação colectiva (pura perda de tempo, tendo em conta que o legislador ordinário tem larguíssima - para não dizer absoluta - margem de conformação na definição do direito de contratação colectiva), o direito à greve e a proibição do lock-out.
Ou será que se refere ao direito ao trabalho, quando o art. 58º refere-se, em rigor, às obrigações do Estado nesse sentido ?
Ou será que vem defender a abolição do princípio trabalho igual-salário igual, o que funciona basicamente como garantia de não discriminação porque não pode em caso algum impedir a evolução profissional e a divisão de responsabilidades ?
Ou que preconiza a eliminação da garantia de higiene, segurança e saúde no trabalho ? Ou da garantia do limite máximo da jornada de trabalho, de descanso semanal e de férias pagas ? Ou do subsídio de desemprego ? Das garantias especiais relativamente a grávidas, lactentes, menores e diminuídos ? Da protecção das condições de trabalho dos trabalhadores-estudantes ?
Ou a abolição do salário mínimo nacional, instituição conformadora da dignidade da pessoa humana e que impede algo ainda pior que o desemprego, o sub-emprego ?

Pare, escute e olhe. Não pense que alguma vez vamos permitir que o despedimento livre seja alguma vez institucionalizado. Nem que volte a existir sub-emprego. Nem que deixem de estar garantidas algumas básicas situações.
As pessoas têm dignidade. E isso está acima de tudo. Pena que haja quem só se preocupe com dinheiro, e, mais, com o dinheiro nas mãos dos empresários.

c) Quanto à coexistência de sectores, está tudo dito. Garante-se apenas a sua existência - eu diria mesmo a possibilidade da sua existência, e a garantia de que não são por natureza conflituantes.

d) A existência de planos económicos vale o que vale. Para além de se referirem às opções do Estado, uma leitura atenta do art. 91º permite concluir que eles dependem basicamente da lógica do Orçamento...

e) Mas o pior fica para o fim. Rui Albuquerque defende preto no branco a retirada do princípio do sufrágio universal. Se retirar o princípio da representação proporcional já seria muitíssimo grave por desrespeitar a pluralidade de opiniões, isso seria uma calamidade. Nem quero imaginar quais as alternativas pretendidas.

1 Comentários:

Às 05 abril, 2006 10:27 , Blogger Ricardo Alves disse...

Excelente artigo.

 

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