sábado, julho 24, 2004

Incontornável...

Incontornável é o artigo semanal de Augusto Santos Silva no Público de sábado.

Augusto Santos Silva mostrou e continua a mostrar ser o mais lúcido da ala mais à esquerda, pertencente ao núcleo duro de Ferro Rodrigues.

Em condições normais, Augusto Santos Silva teria sido porventura o candidato desta ala a Secretário-Geral do PS, mas o inefável mediatismo de Sócrates empurrou Manuel Alegre para este papel, fundamental para demarcar uma herança ideológica que faz parte do PS.

«Demagogia & Negócios, Lda» tem a virtude de rejeitar a voragem autofágica que costuma atingir os partidos políticos em vésperas de eleições internas: descreve a seriedade da situação em que estamos metidos com Santana Lopes em 1º Ministro, sem deixar de defender Sócrates face a comparações demagógicas.

«A estrutura e a composição do Governo motivaram gargalhada geral. Não era caso para menos: o Ambiente entregue ao partido que votou contra a respectiva lei de bases e defendeu, nas eleições legislativas, a extinção do ministério, a Cultura transformada em quadro de excedentes, secretários de Estado que transitam da Saúde para o Turismo ou regressam ao Executivo dois meses depois de terem sido "remodelados", ministros que desconheciam o nome dos ministérios ou ficaram sem instalações e arquivos.

Mas os custos desta farsa são enormes e não têm graça nenhuma. A separação do Trabalho da área social e a sua subordinação à Economia diz tudo da concepção que se tem dos direitos e do Estado social. Cada novo arranjo orgânico significa meses e meses de confusão e paralisia, processos que voltam ao ponto zero, desperdício de recursos e energias: há ministérios criados por Durão Barroso que agora foram extintos, antes sequer da publicação do seu decreto de organização! A vertiginosa rotação de governantes por pastas e a entrega de sectores sensíveis a quem neles não possui nenhuma experiência reconhecida representam descrédito nos serviços, desconhecimento dos assuntos, solavancos na gestão corrente, desresponsabilização geral. Um governo não é um carrossel de feira que um grupo de amigos ocupa como entende. Não é possível aceitar que seja atribuído um ministério a quem nunca anteriormente apresentou uma ideia que fosse de política pública para o respectivo sector.

É preciso, pois, levar a sério os desmandos de Santana e Portas e prevenir as linhas de argumentação que já estão instaladas nos "media" para os proteger. 
 
A primeira é que este governo não é pior nem melhor que qualquer outro e, ao menos, Santana é divertido. A segunda é que Santana Lopes é um "animal político", comparável a Mário Soares, sobrando-lhe em coragem e intuição o que lhe falta em conhecimento técnico e estabilidade emocional. A terceira é que o que aí vem, do lado do PS, é um Santana 2, chamado Sócrates.
 
Não vale a pena perder muito tempo com os dois primeiros argumentos: os custos da animação circense estão à vista nas contas dos municípios da Figueira e de Lisboa, e a comparação de Santana com Mário Soares é simplesmente insultuosa. Mas já me quero demorar na terceira ideia, e com o à-vontade de quem não alinhou nem alinha no coro desafinado que imediatamente se formou, no interior do PS, à volta da candidatura de Sócrates.


Há muito de discutível na prática e na proposta política deste possível futuro secretário-geral do PS. Esse muito é, para mim, tanto que é pública a minha preferência por outro candidato. Mas o facto de José Sócrates gerir cuidadosamente a sua imagem mediática, ter boa presença física e eficácia comunicacional e beneficiar da notoriedade garantida por recente presença sistemática na televisão pública não é, em si mesmo, defeito ou crime, nem o torna imediatamente equiparável - isto é, vulnerável, porque a "cópia" é sempre pior que o "original" - a Santana Lopes.
 
Sabemos quem é, o que fez e o que pretende o ex-ministro de Guterres. Sabemos que se situa ao centro, que acarinha o aparelho do seu partido, que é determinado até ao autismo, que promoveu a candidatura ao Euro 2004, a humanização do combate à toxicodependência e a co-incineração, e de cada uma destas coisas podemos concordar ou discordar (eu discordo irremediavelmente da segunda). O que não podemos dizer é que não tem currículo feito, na defesa do consumidor, na saúde pública e integração social e no ambiente, e em nenhuma dessas áreas encontramos, como seu legado, o vendaval de ilusões e desenganos que Santana Lopes deixou pela Cultura, o Sporting ou a Figueira e Lisboa. Seria muito estúpido que, no calor do debate interno, a "ala esquerda" do PS se encarregasse de dar credibilidade ao argumento que mais favorece a direita na justificação de Santana.

Não se desvie, portanto, a atenção. Ao fim de uma semana de actividade, Santana Lopes mostrou já, em toda a linha, aquilo que é: um grau zero em política substantiva e institucional.»


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